quarta-feira, 20 de maio de 2009
Alerta para um grande equívoco
DE UM LADO , um intelectual brasileiro que já dirige o organismo e conta com a promessa de apoio de 20 países; de outro lado, um ministro da Cultura do Egito, Farouk Hosny, que prometeu queimar livros em hebraico.
Em jogo, a direção da Unesco, órgão voltado à cultura, ao diálogo e à tolerância. O governo brasileiro decidiu apoiar a candidatura do egípcio, contra todas as advertências.
O chanceler Celso Amorim argumenta que é uma decisão baseada na geopolítica, um desejo de aproximação com o bloco árabe e africano.
É razoável que o governo desconfie de alguém da oposição que procure evitar seus erros. Mas nesse caso específico, a ideia é apenas evitar descaminho em nossa política externa, comprometendo a reputação brasileira. Uma política externa deve ser pactuada e confirmada nas eleições. Esta inflexão brasileira, ora convidando ao país o presidente do Irã, que nega o Holocausto, ora apoiando um ministro egípcio que admite queimar os livros em hebraico, quebra a linha tradicional de nossa política.
Não se trata apenas do confronto entre o brasileiro e o egípcio. Trata-se do confronto entre um brasileiro, Márcio Barbosa, que reformou a Unesco, comandou três convenções internacionais e é admirado por países ricos e pobres, e um homem que é, há 20 anos, ministro da Cultura em seu país e tem oposição até entre os egípcios, que fazem campanha na internet contra sua candidatura.
O governo tem inúmeras formas de corrigir sua decisão.
Mas caso não o faça, é razoável que surja no Brasil um movimento pela candidatura de Márcio Barbosa. Se o país oficial distancia-se de sua política, o caminho é reconduzi-lo pela pressão social.
Reconheço que o tema desperta interesse limitado, mobilizando, no momento, alguns círculos culturais e a comunidade judaica. O espaço não permite um debate específico sobre o conceito de geopolítica, suas limitações e virtudes. Não há geopolítica que justifique um erro dessa dimensão. Ao invés de fortalecer a Unesco, através de um brasileiro que a engrandeceu nos últimos anos, o Brasil escolheu o caminho mais difícil que não só atinge Israel mas também os países que apoiam Márcio Barbosa. É um caminho que afastará os Estados Unidos da instituição, estimulando a tendência de não cooperar com a Unesco.
O presidente Lula foi um dos primeiros signatários de um movimento internacional, a partir da ONU, contra a intolerância. Seu governo orgulha-se de apoiar minorias. O ministro egípcio Farouk Hosny está em visita ao Brasil para um congresso internacional. Dentro das limitações, uma vez que o tema não é popular, não tenho outro caminho a não ser mostrar a ele que uma parte do Parlamento brasileiro não concorda com a posição oficial. A candidatura de um brasileiro não é melhor porque nasceu aqui: é melhor porque conhece todos os meandros da Unesco e, através de competência, conseguiu a simpatia de muitos países. E, finalmente, porque jamais admitiria a queima de livros em hebraico ou mesmo a queima de livros em qualquer outro idioma.
FERNANDO GABEIRA, 68, deputado federal pelo PV-RJ, é autor de "O Que É Isso, Companheiro?", entre outros livros.
sábado, 9 de maio de 2009
Um ano sem Artur da Távola
José Serra recorda o amigo Paulo Alberto
Um relato do Márcio Fortes, há pouco mais de um ano, em São Paulo, me deixou apreensivo: "Visitei o Artur da Távola no fim de semana. Ótima conversa. Mas ele está muito frágil, não vai bem. A Miriam pediu para te dizer que não deixe de ir vê-lo logo." Planejei visitar o Paulo Alberto (Artur da Távola era o seu pseudônimo como jornalista e escritor, que ele adotou na época da ditadura) na semana seguinte. Mas a preocupação não me saiu da cabeça.
Dias depois, em viagem pelo interior de São Paulo, um assessor se aproximou com ar de más notícias. Num átimo, pressenti do que se tratava. A partir daí, e até agora, as lembranças misturam tempo, cenários e conversas passadas.
A última vez que estive com ele, no hospital, com sua inteligência e bom humor em dia, ao lado do sofrimento físico. Em 1963, no Rio de Janeiro, em alguma reunião onde o conheci, adversário do Lacerda, expressando-se com clareza, engraçado e boa-pinta.
No início dos anos noventa, numa salinha da liderança do PSDB na Câmara, depois da sessão do dia, somente os dois, disputando quem conhecia mais as letras de músicas do Orlando Silva.
O Zé Kéti visitando o Paulo na Embaixada da Bolívia, cantando "Diz que eu fui por aí", uma composição que não fora ainda lançada.
Em La Paz, no começo do exílio, pleno inverno, a uns 4 mil metros de altura, compartilhando com ele o quarto do hotel. Em Santiago do Chile, na sala da sua casa, ouvindo o professor Anísio Teixeira, seu sogro, um dos maiores educadores que já tivemos, contando como estava o Brasil. No apartamento do senador José Richa, em 1988, planejando a fundação do PSDB.
Vendo-o na TV Senado e ouvindo-o na Rádio Cultura de São Paulo, explicando, analisando e apresentando música clássica.
Quando estudante de Direito, Paulo foi diretor de um jornal da União Metropolitana dos Estudantes, "O Metropolitano", que circulava como encarte dominical do "Diário de Notícias" - e, sem exagero, precursor de um estilo novo na imprensa brasileira ao longo dos anos 60.
Em 1963 já era deputado e líder do PTB na Assembléia Legislativa da Guanabara.
Esse foi um ano difícil - inflação alta, inquietação militar, greves, agitação estudantil, governo hesitante - e longo: acabou, de fato, em primeiro de abril de 1964, quando o presidente Goulart foi deposto.
No exílio, Paulo instalou-se com sua família no Chile, onde fez programas de rádio e de TV, com grande sucesso. Lá nasceram dois dos seus três filhos.
Retornou ao Brasil antes do AI-5, assumindo o jornalismo como atividade principal.
Já no final dos anos 70, depois da anistia, retomou a atividade política. Foi eleito deputado federal em 1986 e reeleito em 1990.
Deu grandes contribuições à nova Constituição, principalmente em relação à comunicação, à liberdade de opinião e de informação.
Elegeu-se senador em 1994, vindo a ser, para mim, o melhor orador da legislatura, com improvisos que poderiam ser transcritos como textos irretocáveis: entonação agradável, idéias boas, por vezes expostas com veemência, mas sem nenhuma ira, mesmo em relação aos adversários.
Por essência, era um homem sem rancores. E um magnífico analista de pessoas e de seu comportamento, sem qualquer mordacidade.
Lembro-me que o Marcello Cerqueira, seu amigo fraterno, nos idos dos anos 60, dizia, divertido: "Paulinho, você é a figura síntese do IV Centenário da cidade." Já o Samuel Wainer me disse, logo no começo do exílio, que achava o Paulo Alberto o político mais promissor da nova geração, e que ele chegaria a presidente da República.
Quando nos conhecemos, eu tinha 21 anos, e passei a tratá-lo como uma espécie de irmão mais velho, não pela diferença de idade, mas de sabedoria. Isto se manteve por todas estas décadas.
Talvez ninguém na vida pública tenha me conhecido tão bem, nos gestos e detalhes e, ao mesmo tempo, me aceitado tão bem.
Por isso mesmo, suas reflexões e opiniões a respeito de rumos que eu deveria tomar em cada fase de minha trajetória, ou como reagir em determinadas situações, sempre foram lúcidas e objetivas, em geral acertadas!
É evidente que a previsão do Samuel exigia uma combinação, digamos assim, de destino e circunstâncias.
Mas o Paulo teve outro problema: em relação à média da política brasileira, ele era equilibrado demais, tinha paciência de menos para cultivar bases eleitorais, avesso a factóides, e tinha, digamos, excessiva boa-fé nas pessoas - na verdade, como dizia o Marcello, ele tinha a visão do outro, reconhecia the otherness of the others, uma expressão de Albert Hirschman, que não sei agora como traduzir.
Num recente jantar com amigos próximos, ao lado da fraqueza física que preocupou a todos, mostrou imensa percepção e acuidade na análise do Brasil.
Como se recordasse o verso de Fernando Pessoa, que ele mesmo costumava citar: "Estou lúcido como se estivesse para morrer."
Artigo originalmente publicado pelo governador de São Paulo, José Serra, no Jornal O Globo em 12/05/2008
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